Bolinhos de chuva, não precisam de chuva!
Esta é uma declaração de amor para uma fórmula antiga da culinária caseira feita com açúcar, ovos, farinha e leite. Não é bolo
É carinhosamente um bolinho. E, embora seu nome o restrinja aos dias de chuva, todo mundo sabe que a guloseima tem passe livre para ser apreciada em qualquer tempo, independente das condições meteorológicas. O quitute também não escolhe idade. Alegra na infância e faz os adultos regressarem a ela em apenas uma mordida. É comidinha leve, que traz conforto e é boa para acompanhar café coado na hora.
Quando os pingos de massa chiam no óleo quente da panela, toda a gente da casa se aproxima do fogão. Depois de dourados e escorridos, a brincadeira é empanar todos eles em açúcar e canela perfumada. Já reparou que bolinho de chuva nunca aparece sozinho? Vem sempre aos montes, multiplicado, porque é para ser servido com fartura, já que todo mundo repete até não sobrar mais nenhum cisco.
Um pingo de história No Brasil do final do século XVIII, muitas receitas tinham como ingredientes de base a mandioca ou o cará. Quem conta é a historiadora e doceira Márcia Clementino, que cuida do Armazém Dona Lucinha, em Belo Horizonte – lugar certo para encontrar um sem fim de quitutes típicos. Naquela época, o trigo era caro, vinha de Portugal com o nome de “farinha do reino”. “Isso pode ser um indício de que o bolinho de chuva, tal qual conhecemos hoje, só veio anos mais tarde, com a popularização do trigo em meados do século XIX”, diz ela, que vê também na massa deste docinho certa semelhança com a massa do sonho, tradicional item da doçaria portuguesa. O folclorista Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) faz menção a essa herança culinária em sua obra História da Alimentação no Brasil. Ele descreve que os sonhos ficavam na bandeja cercados pelas ondas de açúcar fino e de canela em pó. A diferença é que tinha recheio.
A mesma obra anota que quitutes desse tipo não nasceram propriamente das sinhás. Eles saíam das mãos das escravas e por isso chegaram a ser chamados bolinhos de negra. Da cozinha, foram parar nos tabuleiros, quentinhos e embalados em folhas de bananeira. Com o tempo, virou receita popular, com ingredientes sempre à mão.
O bolinho de chuva mais famoso Tia Nastácia dizia: “nasci no fogão e no fogão hei de morrer”. A simpática personagem criada pelo escritor Monteiro Lobato (1882-1948) era uma cozinheira de mão cheia. Entre outros pratos, ela tinha um jeito tão especial de preparar bolinho de chuva que acabou eternizando o doce nas histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo.
Narizinho, Emília e Pedrinho se fartavam. Até o Minotauro, monstro mitológico que aparece em um dos episódios da série, se rendeu aos caprichos de Tia Nastácia:
“Pegou outro, e outro e outro, e comeu a peneirada inteira. Depois me apontou para o fogão num gesto que entendi que era pra fazer mais (…). Acabou completamente manso, esqueceu até a mania de comer gente (…). Pois é, foi o bolinho que me salvou”, suspirou a cozinheira depois de ser libertada do labirinto do monstro.
Quando lhe pediam para contar o segredo, ela avisava: “Receita, dou; mas a questão não está na receita – está no jeitinho de fazer”. A receita está aqui, extraída do livro À Mesa com Monteiro Lobato, de Márcia Camargos e Vladimir Sacchetta.